Tenho pensado muito sobre
a origem de certas palavras e de como elas se transformam com o tempo.
Especialmente sobre as que acabam adquirindo novos significados problemáticos e
controversos. A palavra mulatx é uma delas. Pra que não fique nehuma dúvida no
ar, deixa eu explicar de onde ela vem.
"Mulatx" é uma
derivação da palavra "mula", aquele animal estéril, resultado do
cruzamento do jumento com o cavalo. Inúmeros registros etmológicos indicam que
foi há mais ou menos 400 anos, ou seja, durante o período escravatista
brasileiro, que essa palavra começou a ser usada para se referir aos filhxs de
negrxs com brancxs. Não precisa ser nenhum gênio pra notar essa estranha
comparação, né? Naquela época, uma pessoa nascida de um cruzamento percebido
como no mínimo insólito, assim como no
caso do animal, era tida como um híbrido, nem brancx nem pretx e por isso
exigia uma classificação à parte. Uma classificação limitante e preconceituosa,
mas que infelizmente insiste em se manter no vocabulário do brasileiro com o
passar do tempo.
Se uma nova palavra cai no
gosto dxs falantes de uma língua ela ganha notoriedade através de seu uso
contínuo e com o tempo acaba entrando pro vocabulário oficial da língua. Depois
de séculos, falantes nativos nem sempre sabem qual a verdadeira origem das
palavras que usam, porque realmente não é necessário saber de onde vem uma
palavra pra entender o que ela significa em um contexto, ou pra saber
empregá-la pra comunicar o que se quer. No entanto é difícil encontrar uma
pessoa negra que não se lembre da origem da palavra "mulatx".
Eu detesto ser chamada de
mulata. Mas isso sou eu. Tem muito negrx que parece não se incomodar muito com
isso. É que muitas vezes vítimas de preconceito se reapropriam das palavras usadas
pra feri-las. Na America do Norte, por exemplo, muitos negrxs usam entre si a
palavra "nigga", que é uma derivação de "nigger" e que era
originalmente uma forma de insultar pessoas de pele escura. Eu até entendo a
lógica dxs negrx que não se incomodam com a palavra "mulatx" ou que
tentam redefinir para si mesmxs o significado de "nigga". Palavras
não são racistas em si. O preconceito vem é dos significados que nós atribuimos
a elas. A grande questão é que não faz tanto tempo assim que nós negrxs começamos
a ter o direito de contar nossas estórias usando nossas próprias vozes,
partindo de nossos pontos de vista. Talvéz por isso essas controvérsias ainda
existam, ou seja, alguns de nós se identificam com termos que muitxs outrxs
rejeitam e vice-versa.
Eu sou é negra, prefiro
que me chamem assim e não de mulata, escurinha, morena ou qualquer outro
eufemismo desjeitado. Fico mesmo é muito triste quando percebo que tanta gente
parece que fica meio constrangida de me chamar da forma que eu prefiro. Já ouvi
muita gente dizer que não sabem mais
como se referir a uma pessoa negra, que tem medo de ofender e por aí vai. Eu
vejo alguns pontos interessantes nessa estória.
O primeiro deles é
meramente uma questão de bom senso. Como já disse antes, nenhuma palavra é racista.
O racismo está é na cabeça das pessoas que as usam. Quer ver uma coisa?
"Negx" – uma variação da palavra "negrx", pode ser usada
tanto pro bem quanto pro mal. Vocês
conseguem perceber a diferença entre "O que é que você quer reclamando
aqui sua nega preta?" que uma vez ouvi uma vendedora dizer a minha mãe e o
famoso "Ô nega, cê me faz um favor?" que tanto se usa em Salvador, inclusive independentemente da
cor da pele de txl "negx" ser realmente preta. Da mesma forma que o
tom faz a música, as situações e os contextos fazem o racismo.
O segundo ponto tem a ver
com nossa (falta de) empatia para com os problemas dos outros. Pra uma pessoa
que não faz parte de nenhum grupo, que é constante alvo de discriminação deve
ser difícil entender que quando qualquer minoria decide que não tolera mais
certo tipo de tratamento ou classificação e parte pro ataque, não é porque uma
única pessoa, sem querer colocou os pés pelas mãos e falou uma besteira sem
pensar. Essa atitude defensiva vem de vidas inteiras ouvindo os mesmos
comentários, de várias pessoas, em vários momentos.
Se você faz parte desse
grupo, deixa eu tentar te explicar como é isso. Imagine aí que você chegou na
escola ou no trabalho depois de ter dado um corte radical no cabelo. Como você
se sentiria depois de ouvir pela centésima vez no dia "nossa, você cortou
o cabelo!"? Ninguém está querendo intencionalmente te encher o saco, mas
ninguém nem imagina quantas vezes você já ouviu a mesma frase no mesmo dia.
Isso sem contar que vai ter gente que vai achar seu corte lindo e gente que vai
achar horrível. Tem os que vão guardar suas opiniões sobre seu novo visual pra
si mesmos e os que vão te dizer exatamente o que acharam mesmo sem você ter
perguntado. Muitos dirão o que acharam de seu novo corte na sua frente, outros
vão falar mal por trás. Os comentários negativos muitas vezes chega de pessoas
que você menos espera e isso te machuca. Só que no nosso caso não é só o
cabelo, é nossa aparência inteira que desperta essas reações. E não é só no
primeiro dia depois do corte, é a vida toda. Tá vendo como faz sentido ter
cuidado com o que se diz?
Eu particularmente acho
positivo quando genuinamente na dúvida, algumas pessoas me perguntam se podem
me chamar assim ou assado. Acho muito bom quando o ser humano tem coragem de
admitir ignorância e demonstra vontade de aprender. Mas eu sou professora, né?
Faz parte de minha profissão e eu aproveito mesmo para ensinar. Mas repito:
isso sou eu. Não posso garantir que todo mundo fique à vontade com isso.
Lembre-se, de que com certeza não será a primeira pessoa para quem esta outra
estará respondendo essa pergunta, não se esqueça do exemplo do corte de cabelo.
A melhor coisa a fazer se
você não sabe que termo usar pra se referir a alguém de pele escura, é ficar
atento e escutar com cuidado e sensibilidade. Preste atenção a como a pessoa se
refere a ela mesma. Muitas vezes nós nos concentramos tanto em nossa
perspectiva das estórias que acabamos não escutando a estória de ninguém. Esse
medo todo de ofender muitas vezes tem menos a ver com a compreensão da situação
do outro e mais com a tentativa de evitar o próprio constrangimento. Porque se
a questão for simplesmente preservar o outro, e não tivermos certeza se um
termo pode ser ofensivo, uma opção bem simples é não usá-lo. Só no dicionário
Aurélio existem mais de 400.000 palavras catalogadas, com certeza a gente
consegue achar alguns sinônimos para uma
palavra quando estivermos achando que o impacto de uma delas pode ser
negativo para alguém.
Pra finalizar tem também a
nossa mania de defender nossos mau-hábitos com o pé firme e uma certa má
vontade de agir pra mudá-los. Já vi muita gente se revoltando quando um termo
politicamente correto surge e passa a ser preferido ao invés de um que é
limitante ou ofensivo. Muitos acham bobagem, mas não é. Na minha opinião, ser
mulatx é muito diferente de ser negrx ou afro-descendente. O primeiro sugere
uma consequência anormal de um relacionamento incomum enquanto os outros dois
representam fatos, o que se vê, o que se sabe sobre a origem de alguém. O
primeiro carrega um julgamento enquanto os outros são neutros. E
podem ter certeza que nossos cérebros sabem disso.
Inúmeras pesquisas em
linguística já mostraram que a língua influencia nosso pensamento. Sendo assim,
reavaliar nosso vocabulário não é uma mera questão de cortesia e muito menos
coisa de intelectual que não tem o que fazer e sim um exercício importante de
crítica e transformação social. Ninguém
merece passar a vida carregando nas costas o peso de ser comparado a um animal,
então vamos começar? esqueçamos xs mulatxs para melhor enxergar ox negrxs e
afro-descendentes.
P.S. Que tal aproveitar a
chance pra dar uma limpada geral no vocabulário e em consequência na mente?
Fiquem atentos ao uso de palavras que limitam e esteriotipam as pessoas não só
em relação a etnia, como também em relação a gênero, idade, situação social...
Isso além de ampliar o seu vocabulário vai ainda ajudar a melhorar o mundo ao
seu redor.
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