Quando resolvi encarar o desafio de ensinar alemão
como segunda língua, mal sabia eu que a aventura estava apenas começando.
Pouquíssimo tempo depois de ter assumido minha primeira turma de jovens
refugiados, as conversas com outros professores e professoras sinalizavam uma
necessidade específica surgindo nas escolas de ensino médio aqui em Bremen.
Estou falando de Bremen porque esta é a minha realidade, mas é bem capaz que
tenha sido assim na Alemanha inteira. De repente, o perfil dos alunos das
classes de alemão como segunda língua começou a mudar: de altamente
escolarizado para analfabeto.
Imagem: Pixabay |
Na minha primeira turma de Vorkurs, (como são chamadas
as primeiras classes frequentadas pelos adolescentes refugiados em Bremen) tive
alunos cheios de ambições. Seus pais eram médicos, advogados e empresários na
Síria e muitos deles sonhavam em seguir os passos dos pais. Eles e elas se
interessavam pelo que precisariam fazer para ter esse tipo de formação e tinham
consciência da necessidade de aprender muito bem a língua para isso.
Além disso, essa galera se interessava por normas e valores
da cultura que os acolhia, e, por isso, me faziam virar noites preparando aulas
que satisfizessem a sede de aprendizado. Por aquela turminha, quebrei minha
cabeça diversas vezes para preparar aulas compreensíveis à turma toda, de
acordo com as competências linguísticas de cada pessoa. Era desafiador, e muito
divertido!
Foram diversas aulas nas quais, além de aprender
gramática e vocabulário, discutíamos também, tolerância religiosa, diferentes
formas de governo, falávamos sobre racismo e outros temas cabeludos. Não precisou
de muito tempo com aquela turma pra notar que, na grande maioria, eles e elas sabiam
bem como escolas funcionam e suas famílias eram presentes e valorizavam a formação
acadêmica.
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Com o passar do tempo, o alunado começou a mudar. De
repente, na minha classe, a maioria mal sabia assinar o próprio nome. Eram
jovens de 13, 14 anos que nunca tínham vivenciado um momento sequer de paz e
seus países de origem. Famílias que precisam juntar tudo periodicamente e fugir
porque o vilarejo foi bombardeado não têm como priorizar a escolaridade de seus
filhos e filhas.
Buscando ensinar de forma alinhada às necessidades de
meus alunos e alunas, acabei me enveredando
pelo terrreno da alfabetização de jovens. Hoje coordeno um centro de alfabetização para jovens
refugiados. Na nossa escola, primeiro se ensina a ler, escrever e entender como
as demais instituições de ensino funcionam bem como os possíveis caminhos a
serem seguidos na trajetórias escolar. Vencida esta etapa, eles e elas ainda têm
dois anos de ensino de língua, sendo que no segundo ano, na maioria dos casos,
esses jovens já participam das aulas das demais matérias no turno da tarde. Até
concluirem a escola, eles e elas enfrentam muitas incompreensões, sejam
linguísticas ou culturais, inúmeros obstáculos e muito, mas muito preconceito e
segregação.
Com tudo isso, passados dois anos que a minha primeira
turma de alfabetização tinha terminado, recebi uma mensagem de um ex-aluno pelo
WhatsApp. Em sua mensagem, escrita em alemão perfeito, ele me contava que tinha
conseguido passar em uma prova de história e outra de matemática, feitas em sua
turma regular na escola de ensino médio. Ele ainda me agradecia por sua
conquista e dizia que estava adorando estudar, aprender e que já começava a
considerar a possibilidade de fazer um curso profissionalizante para se tornar
assistente de classe em uma escola de ensino fundamental. A mensagem terminava
com ele me perguntando se eu achava que ele teria chance de conseguir levar
esse plano adiante.
Respondi primeiramente celebrando sua conquista.
Então, o parabenizei calorosamente pelas conquistas, mas logo tive que me
confrontar com sua pergunta: será que ele tem chance de conseguir sua
qualificação profissional?
Teria, se a escola e a sociedade conseguissem
enxergá-lo além de sua origem. Se seus professores e professoras conseguissem
entender o seu analfabetismo prévio e o analfabetismo de sua família objetivamente,
ou seja, tão apenas como fatos ocorridos em decorrência da tragédia que se
abateu em seu país de origem ao invés de como falha de caráter ou impeditivos
para seu futuro. Seria possível, se a sociedade pudesse resistir ao impulso de
constantemente encaixá-lo em estereótipos múltiplos.Teria muita chance, se
encontrasse pessoas dentro das instituições que mesmo enxergando suas
limitações, preferissem se concentrar em seus potenciais o incentivando e
motivando.
Pensei em tudo isso, mas só respondi: “Claro que você
consegue. Me avise se eu puder ajudar de alguma forma”.