quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Reflexões de fim de ano em um mundo em lockdown

O ano de 2020 não foi fácil pra ninguém. Quando a gente achava que tudo já estava meio ruinzinho, vem uma pandemia para nos mostrar que sempre existe muita possibilidade de piorar. O Coronavírus chegou ameaçando a segurança financeira de muita gente, nos forçando a repensar nossos privilégios, forma de convívio e hábitos diários. 

Imagem: Cris Oliveira

Minhas bolsas pequenas já não servem pra nada, afinal de contas, nelas têm de caber, no mínimo, uma máscara e uma garrafa de álcool em gel. O simples ato de ir ao supermercado virou uma operação de guerra. Tem que desinfetar as mãos antes de entrar, desinfetar a parte do carrinho onde todo mundo pega e andar pelas alas do supermercado como se estivesse num crossover de apocalipse zumbi com prova de obstáculos; mil malabarismos para não chegar perto de ninguém. Se alguém tossir, o caos se instala.

Imagem: Anastacia Gepp @Pixabay

No meio desse cenário de horror, a gente nem percebe que, além do cuidado com a nossa saúde, precisamos também prestar muita atenção para não nos infectarmos com outro vírus igualmente letal que veio colado com a Covid-19. Esse vírus é um velho conhecido, mas sempre encontra formas novas de atacar. Ele tem muito nomes, mas aqui eu vou chamá-lo de racismo.

Imagem: VicTor @Nappy
 

Entre março e abril rolou o primeiro lockdown aqui na Alemanha. Quando a política julgou que a situação estava mais ou menos sob controle, a vida foi aos poucos voltando ao “normal”. Na volta às aulas, comecei a notar algumas mudanças assustadoras nas atitudes de colegas de trabalho. Certa feita, presenciei uma situação que, até hoje, me traz um certo constrangimento. 

Imagem: Alexandra_Koch @Pixabay
 

Uma professora estava distribuindo apostilas para seus alunos e alunas. Enquanto isso, a sua expressão facial era a do mais absoluto nojo. Ela colocava os papéis na mesa e reagia de forma quase que incontrolada, como se estivesse lutando contra uma espécie de pavor se os alunos esboçassem qualquer movimento em sua direção. Era como se todos os jovens daquela sala estivessem com as mãos cobertas dos vírus mais abjetos.

Um dia desses, presenciei outra situação quando fui à padaria. A loja era relativamente pequena e, por isso, era compreensível que muitas pessoas não pudessem entrar de uma só vez. Do lado de fora da loja não dava para ver quem estava dentro. Isso só era possível se a pessoa abrisse a porta. Cheguei quase ao mesmo tempo que um rapaz, mas ele estava uns três passos na minha frente. Abriu a porta, entrou e eu prontamente iniciei uma fila do lado de fora.

Poucos segundos depois, ele sai com as mãos levantadas, aquele gesto internacional do “eu me rendo”, dando passos pra trás. Quando a porta se abriu, pude ver que, lá dentro, um outro cliente já estava sendo atendido e ouvi a atendente falando uma série de absurdos em voz bem alta. Ela se queixava de pessoas que não sabiam falar nem ler alemão, afinal, tinha um papel colado na porta do estabelecimento avisando que só deveria entrar um cliente por vez, e do atrevimento geral “dessa gente”.

Uma outra situação que me preocupou bastante foi quando soube de uma notícia que foi divulgada num jornal de muita audiência aqui da região. Nessa reportagem, segundo o que me contaram (eu mesma nem cheguei a ver essa notícia) eles enfatizavam que a maior incidência de infecção por Covid-19 se encontrava em bairros com grande população de migrantes. Essa notícia passou a circular mais do que o próprio vírus em redes sociais e grupos de whats app.

Esses eventos são extremamente problemáticos e trazem em si o elemento comum do racismo. A incerteza causada pelo momento atual toca diretamente nas inseguranças e despertam uma profunda ansiedade nas pessoas. Quem é movido pelo medo tende a ver o outro como ameaça.  Se permitimos que nossas incertezas fiquem ali dentro de nós, sem nunca serem questionadas, elas vão criando espaço para que o medo se instale por completo e esse sentimento não é o melhor dos conselheiros.

Atualmente, todo mudo anda assustado e tendo de lidar com a sensação de perda de controle. Não é à toa que a xenofobia aumentou assustadoramente depois do início da pandemia. Políticos e organizações sociais têm denunciado o aumento de mobilizações de extrema direita no país. Atos de intolerância que antes seriam possivelmente reprimidos, hoje encontram permissão para serem expressados sob a justificativa de “preocupações normais que o momento exige”.

É exatamente por vivermos uma situação extrema, propícia ao medo, que devemos estar atentos aos nossos discursos e comportamentos. Além do momento ser assustador e novo para todo mundo, apenas recentemente começamos a ampliar os debates sobre os males que o racismo ocasiona nos indivíduos e nas sociedades. Por isso, nunca foi tão importante direcionar a atenção para as desigualdades ao nosso redor. Sim, precisamos nos proteger de uma doença, mas, para isso, não precisamos negligenciar o nosso cuidado com a dignidade do outro.

Esse tipo de reflexão deveria ser nosso exercício constante, independente da pandemia. A ciência já nos apresentou uma vacina para combater o vírus, mas contra preconceitos e racismo, infelizmente, não há vacina que dê jeito.

Imagem: s_grafik@Pixabay
 

Para não terminar esse texto de forma tão negativa, aqui vão algumas reflexões sobre as situações que eu contei. São sugestões de como seguir cuidando da saúde e higiene sem dar espaço para intolerância.

1. Na escola, o/a professor/a pode colocar as apostilas em uma mesa num canto da sala e cada aluno/a levanta-se, individualmente, para pegar o seu exemplar. Na minha escola, todos/as os/as professores/as e alunos/as estavam usando máscaras dentro das salas, podendo tirá-las um pouquinho aqui e ali para respirar melhor, sempre mantendo o distanciamento. Estavamos dando aula de janela e portas abertas para o ar circular bem e implementamos uma rotina rígida de higiene no início das aulas. Os alunos/as já tinham até se acostumado com a nova rotina. Chegou? Desinfete sua mesa e cadeira, lave sua mão por 20 segundos com água e sabão (a garotada cantava até umas musiquinhas para ajudar  a contar o tempo) e só depois desse ritual é que a aula podia começar.
Imagem: Klaus Hausmann @Pixabay

 2.
   Que tal afixar as regras de seu estabelecimento comercial em um local bem visível também em outras línguas que não só a local? Basta saber quem são seus clientes e traduzir para os idiomas mais frequentes da sua região. Se ainda assim alguém não fizer exatamente como descrito no aviso, uma ideia é, primeiro, acreditar que a pessoa está distraída, que não viu o aviso, que não sabe ler, e falar pra ela, de forma educada, como proceder. Nem todo mundo que está fazendo uma coisa fora da regra está agindo por sacanagem premeditada e pandemia não é desculpa para ignorar cortesia e regras simples de educação e convívio social.
Imagem: Claradoodlak @Pixabay

 3.
Não há necessidade nenhuma de um artigo de jornal fazer um link entre migração e hotspots de infecção para ser informativo. Se alguma publicação fizer isso, está agindo de forma manipuladora. No caso específico dessa notícia, pensei que poderiam ter noticiado dizendo: “No seguintes bairros foi detectada uma maior incidência de contaminação”. Isso é fato. Fazer uma conexão entre a infecção e o número de migrantes é uma escolha editorial no mínimo questionável que serve apenas para inflamar as opiniões já polarizadas. Além disso, esse tipo de foco dado à notícia pode gerar uma sensação falsa de segurança em moradores de outros bairros. Em um momento em que a curva de infecção resiste em abaixar é muito perigoso começar a relaxar e se sentir imune. A população geral da cidade, sem exceção, deve continuar a se manter vigilante com cuidados com a higiene e seguir evitando contatos sociais. Independente do bairro e de ser migrante ou não.
 
4. Nunca foi tão importante se informar. Mas também nunca foi tão importante saber de onde vêm nossas informações. Eu por exemplo, confesso que não consegui encontrar a notícia de que falei acima em lugar nenhum, apesar de ter falado com várias pessoas que me garantiram terem lido isso aqui e ali. Na minha pesquisa para fazer este post, achei vários artigos criticando notícias que fizeram esse tipo de conexão e pedindo cautela e mais critério na análise dos fatores que contribuem para o numero elevado de infecções.
 
 
Minha conclusão e conselho sobre essa história é: É muito importante procurar fontes confiáveis de informação e se limitar a duas ou três. Se informar é bom, mas o excesso de exposição a essas notícias preocupantes não vão nos oferecer novas formas de nos protegermos e podem até vir a ser um tiro pela culatra por acabarem servindo para acionar este pânico que muitas pessoas estão vivendo no momento. Pessoas assustadas não conseguem usar bem a razão e, quando ela sai de cena, o terreno fica muito propício para a intolerância.

Cuide-se e cuide das pessoas ao seu redor também. Essa pandemia tem mostrado que isolamento social é cruel e pode ser fatal. Não permita que, além do Covid, os preconceitos te isolem.

Tendo disse isso, eu desejo, do fundo de meu coração, para todo mundo, que a gente consiga sair logo dessa e que possamos manter nossa humanidade e dignidade depois que isso tudo passar. 

Que 2021 possa ser mais feliz.

Imagem: Free_Photos @Pixabay

 

Meu muito obrigada a minha querida Lali Souza pela revisão e comentários críticos que me ajudaram a melhorar esse texto.


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Continuidade

Faz um ano que eu e Flora Régis Campe, uma amiga querida, demos a vida a um projeto antigo e muito desejado. Há 7 anos nós duas tínhamos participado de um curso que mudou nossas vidas através da reflexão.  O curso era uma especialização que analisava a fenômeno da migração sob uma ótica psicológica e social. De repente eu percebia que muitos dos conflitos, tristezas e frustrações que eu sentia eram bem mais comuns do que eu imaginava. Ao mesmo tempo, eu recebia ferrametas para lidar com aqueles sentimentos. Foi um curso que realmente abriu meus olhos para muita coisa e, depois que acabou, me deixou com o sentimento de que o que tinha aprendido ali precisava ser compartilhado com o mundo.

Mal sabia eu que minha conterrânea, colega de curso e amiga, estava em seu cantinho, pensando a mesma coisa que eu: como acessibilizar essa mensagem para o maior número de pessoas possíveis? Foi assim que um dia, meio que sem querer, começamos a nutrir a ideia de lançar um podcast sobre o assunto. E isso foi exatamente o que a gente fez. Criamos um podcast para falar sobre migração, educação, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal.

Imagem: Beatrice Castelani

Já falamos sobre tanta coisa, mas seguimos sentindo que ainda há muito o que se falar. Conhecemos pessoas maravilhosas, recebemos lindas mensagens de incentivo ao trabalho que estamos desenvolvendo e estamos cada vez mais empolgadas com o que temos produzido. Me dá muita felicidade poder contribuir dessa forma para despertar a reflexões e poder ajudar a encurtar os espaços entre pessoas. 

Imagem: Clarisse Och

A gente faz o Continuidade com muito amor para nós mesmas e para vocês também. Vocês podem nos escutar no Spotify, no Deezer, no Google Podcasts ou no nosso site. Além disso vocês podem nos seguir também no Instagram, Facebook ou Twitter. Você também pode nos escrever um um email (continuidadepodcast@gmail.com). Nós vamos adorar saber sua opinião e conhecer sua história.