quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Consciência Negra: Irmãos de cor na Alemanha



Quando decidi vir pra Alemanha há mais ou menos 12 anos a coisa que mais me preocupava era como eu enfrentaria o racismo. Tinha certeza que quando chegasse aqui iria ter de passar por  situacões desagradáveis, só não sabia como elas se manifestariam e como me defenderia. Mas estava decidida a vir. Meu futuro marido estava aqui e me garantia que não precisava ter medo, que existia muito racismo aqui sim, mas que a gente se adapta, se fortalece, luta contra e aprende a  viver com isso. No final das contas o amor falou mais alto e acabei vindo com medo e tudo.


Logo que cheguei, talvéz por causa da minha expectativa anterior, me surpreendi. Andava meio na defensiva, com medo dos ataques que poderiam vir de qualquer lugar inesperado, mas com o passar do tempo fui percebendo que as situações desgradáveis para as quais eu me preparava tanto nunca vinham. Pelo contrário, comecei a notar que muitos dos alemães que eu encontrava por aí sabiam muito mais do Brasil, sem nunca terem ido lá, do que eu sabia da Alemanha apesar de já estar vivendo aqui. 

Percebi também que muitos tinham um interesse genuíno pelo Brasil, sua história e sua gente. Comecei a relaxar e perceber que os monstros que eu esperava encontrar aqui não andavam assim espalhados por toda parte e que essa terra estava passando por um processo de mudança impressionante, se tornando cada vez mais internacional, aberta e tolerante. 


Comecei a ver reconhecidas certas características minhas que no Brasil ou passavam despercebidas ou eram logo menosprezadas mesmo, como meus olhos escuros, a cor de minha pele e principalmente meu cabelo. Nunca fui chegada a chapinha ou alisamentos simplesmente porque me irritava ser dependente de qualquer coisa no meu dia a dia. Meus cabelos sempre foram mais pro natural por questão de praticidade mesmo, mas confesso que de vez em quando cedia a pressões da família („menina, que cabelo doido, vai dar um jeito nisso“ era uma das coisas que eu ouvia das super bem intencionadas mulheres da minha família) e acabava dando um relaxamentozinho aqui outro alí. Aqui na Alemanha aprendi a gostar genuinamente de minha imagem no espelho, inclusive do meu cabelo „doido“ e eu serei pra sempre agradecida a esse país por isso. 


Depois de ouvir  incontáveis elogios a gente acaba se convencendo de que não há nada de errado com a gente e isso é maravilhoso. É um grande alívio quando percebemos que podemos escolher mudar alguma coisa em nossa aparência, mas não nos sentirmos forçados a mudar nada por uma mera questão de aceitação. Esse é o ponto: assim que cheguei em Bremen, eu como negra, me senti aceita e isso foi fundamental pra minha história aqui neste país.


Infelizmente a fase do namorinho apaixonado um dia chega ao fim em qualquer relação e a minha com a Alemanha não podia ser diferente. Passado o primeiro momento de encantamento, comecei a perceber que aqui as experiências de negritude variam muito e nem sempre as de outros negros com os quais eu convivi aqui foram assim tão positivas quanto as minhas. Prestando mais atenção e conhecendo mais pessoas, acabei notando que o racismo aqui se manifesta de forma muito complexa e em muitos momentos ele fica até difícil de identificar por ser confundido com outras coisas. Ou seja, acaba parecendo muito com o que acontece no Brasil.


Hoje em dia, com o olhar mais crítico de quem já passou da fase de encantamento com o novo país, percebo que quanto mais escura a cor da pele, maior o racismo enfrentado. A origem também é um fator importante. Todo mundo ama um negro latino, mas esse amor nem sempre se extende aos africanos. O preconceito aqui se manifesta, pelo menos pra mim, mulher brasileira, negra de pele não tão escura, de forma bem cordial. Eu entro em um lugar e as pessoas já esperam que eu seja a atração da festa. Todos acham que eu só vivo feliz. Que sei cantar, dançar, que sinto frio o tempo todo, que venho do morro, que sou super sensual e só penso naquilo. 


Na verdade, nem sempre me incomodo quando alguém tem essa imagem de mim. Essas só são primeiras impressões que podem ser descontruídas quando se conhece alguém melhor. O que incomoda mesmo é quando a gente percebe que essa é a única imagem e que por ela ser tão reduzida e rígida, acaba me limitando também. É um saco ter sempre que conversar sobre essas mesmas coisas aí, simplesmente porque muita gente não entende que existe mulher negra brasileira que não sabe dançar, que não entende nada de futebol, que não acha o frio tão horrível assim e que não está o tempo todo tentando seduzir alguém.


Eu tenho a sorte de conviver com pessoas de mente mais aberta e reflexiva. Já passei por umas situações esquisitas, mas foram poucas. Enquanto isso tem gente que tem de lidar todos os dias com coisas muito piores como com o fato de sempre serem tratados como estrangeiros apesar de terem nascido aqui, com os olhares insistentes que ou desconfiam ou tem uma curiosidade invasiva e com as oportunidades de emprego mais escassas todos os dias. Esse é o racismo nu e cru dispensando qualquer cordialidade.


No meio de tudo isso a gente acaba reconhecendo nossos iguais. Pessoas, que como a gente sofre com as mesmas coisas e por isso entendem exatamente porque agimos como agimos. Por isso não é raro que caminhando pelas ruas de Bremen de vez em quando se encontre outros negros e negras que do nada se cumprimentam. 

Quando isso aconteceu comigo pela primeira vez, respondi a saudação, mas achei estranho. Sendo soteropolitana, se eu sair por aí saudando cada negro igual a mim que encontrar na rua, vou passar o dia inteiro só dizendo „oi“. Até que um dia, uma negra, até meio parecida comigo, passou por mim e me cumprimentou de uma forma que me fez entender tudo. 

Ela sorriu e disse „Hi, sister“. O que pra ela foi somente um cumprimento, pra mim significou muito mais. Queria dizer: estamos aqui nesse país cheio de pessoas diversas, mas existe algo em mim e em você que nos separa de muitos deles ao mesmo tempo que nos conecta com muitos outros, de lugares que eu e você nem podemos imaginar. Eu vejo você e você me vê, mas pra ser visto muitas vezes é preciso passar por muita coisa e viajar pra muito longe. 

Desde então toda vez que encontro um outro preto ou preta por aí, não hesito em sorrir e dizer „oi irmão/oi irmã“ e pensar comigo mesma „Estamos aí. Estamos aqui“.

Guest Post para o blog Quero Aprender Alemão.


4 comentários:

  1. hi, sister! tb me disseram isso uma vez e tive a mesma sensacao que vc. Cheguei ate aqui pelo blog queroaprenderalemao.

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  2. Hi sister of my soul! rs Apesar do contexto, achei bacana esse sentimento de pertencer a algo maior <3

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