Lá ia eu andando pelo centro da cidade de Bremen, indo
resolver uma coisinha aqui, outra ali, quando, de repente, escuto alguém
falando alguma coisa em português. Isso é um fenômeno quase mágico quando se
mora no exterior. Você ouve sua língua, e é como se de repente tudo virasse
pano de fundo. Em momentos assim, eu imagino como se a cena parasse e o que eu
tinha ouvido em meu idioma se amplificasse. Eu adoro isso. Naquele dia, no
entanto, eu teria aberto mão de meu superpoder de brasileira de reconhecer meu
próprio idioma misturado onde quer que ele esteja para ter sido poupada de
ouvir o que eu ouvi.
Era um conhecido das antigas. Um cara bacana de quem
eu gosto nem sei por que, afinal, temos pouca coisa em comum e pouquíssimo
contato. Sempre encontrava com ele nas farras da vida, falávamos merdas juntos,
dávamos risadas. Esse era nosso nível de convivência.
E, onde quer que ele me veja, sempre grita alguma
piadinha, mesmo que esteja do outro lado da rua. Eu sempre respondo com uma
risada e outra piada pronta e sigo meu caminho. Já fazia um tempinho que não
encontrava com ele por aí, quando, de repente, escuto sua voz no meu idioma,
que se destaca e faz o alemão virar barulho de fundo:
- “Não mudou nada! Continua linda! ”
Me viro para tentar identificar de onde veio a voz e,
toda alegre, cumprimentar meu conhecido que não via há uns bons 8 anos, e ele
repete:
- “Continua linda como antes. ” E acrescenta:
- “Só está um pouco gorda”, e insiste:
- “Linda demais, como sempre. Só está gorda”.
Como sempre, em situações esdrúxulas, não tive reação
e fiquei com cara de nada. O que não deu para evitar foi a raiva que senti
depois. Minha alegria em revê-lo se transformou imediatamente em mal-estar. Eu
tenho um talento especial para atrair pessoas esquisitas e nem sempre acho isso
uma coisa ruim. Pessoas esquisitas são especiais e, muitas vezes, a gente
precisa de uma boa dose de excentricidade para enfrentar os imprevistos da
vida. Aquele comentário dele, no entanto, me fez sentir invadida e exposta,
como se aquele quase estranho tivesse rasgado minha roupa no meio da rua.
Vocês já pararam para notar como nós, mulheres, em um
momento ou outro, sempre acabamos sendo alvo de observações não solicitadas
sobre nossos corpos por aí? Não me lembro de ter perguntado a meu conhecido sem
noção se eu estava feia ou bonita, gorda ou magra. É simplesmente muito
ofensivo que um comentário como esse seja a frase que abre uma conversa com uma
pessoa com a qual você não tem intimidade. Dizer isso antes mesmo de um “oi /
como vai / há quanto tempo” é grosseiro e invasivo.
As pessoas não nos poupam de seus comentários sobre
nosso peso, nossa aparência e os cuidados que temos ou deixamos de ter com ela.
Se vacilar, esses comentários se expandem até nossas vidas sexuais e amorosas.
“Tá com a perna toda cabeluda, deve estar solteira”. “Se depilou e comprou
calcinha nova. Hoje vai dar pra alguém”.
Me intriga e irrita muito essa obsessão que o mundo
tem com o corpo feminino, suas vidas e essa mania de achar que nós, mulheres,
estamos sempre receptivas a comentários sobre a forma como nos apresentamos
para o mundo. Homens não são alvos tão frequentes de observações não
solicitadas sobre seus corpos como nós. Numa sociedade tão machista e misógina
como a nossa, existe uma expectativa constante de que mulheres sejam apenas
seus corpos e que eles não questionem nunca o que esse mundo doente quer que
eles signifiquem.
Por isso, mulheres, não ousem ser gordas, a menos que
vocês sejam mães de alguém e já tenham passado dos 60. Se saírem na rua
exibindo alguns fios de cabelo branco, é bom ter uma explicação na ponta da
língua, tipo “essa semana foi o maior corre-corre”. Se você sair sem maquiagem,
o mundo vai achar que você se entregou, que está depressiva e não se cuida
mais. Mas cuidado: homens não gostam de maquiagem demais. Não vista saia curta
demais, senão vão achar que você está querendo se aparecer, ou até pedindo para
ser assediada. Mas não vai sair com essa roupa cobrindo demais o corpo porque
você não é beata e corre o risco de não arrumar quem te queira.
Affffff, isso cansa! Fico me perguntado se existe
alguma forma de acertar enquanto mulher numa sociedade como essa. Me parece
sempre que só temos duas alternativas: viver presas em caixinhas demarcadas
para nós, eternamente escravas subservientes para sermos aceitas, ou chutar o pau
(figurativamente, mas, muitas vezes, literalmente mesmo), recusar rótulos e
para sempre sermos tachadas de chatas, difíceis e “feminazis”.
Eu tenho procurado uma alternativa. Comecemos
devagarzinho, fazendo pequenas mudanças, que, no final, acabam fazendo uma
diferença enorme. Podemos, por exemplo, fazer tentativas sinceras de guardar
nossas opiniões sobre a aparência e as vidas alheias para nós mesm@s,
principalmente quando se tratar das vidas de outras mulheres.
Sei que falar d@s outr@s, muitas vezes, é uma espécie
de ritual catártico e eu não estou propondo que ninguém vire sant@ de uma hora
para outra, mas estou sugerindo que, aos poucos, a gente vá mudando o foco de
nossas observações, que comecemos a nos questionar, de forma consciente, se
comentar o peso de fulana, a roupa de ciclana e a aparência de beltrana é
realmente importante para nós e para a pessoa que vai ouvir. Será que,
comentando isso, iremos, de alguma forma, provocar alguma mudança positiva onde
quer que seja?
Se a resposta for sim, e se essa pessoa for próxima de você, vá fundo, comente, ajude, elogie, sugira
formas de melhorar. Se não, na moral, faça um favor à humanidade e guarde seu
comentário para você.
Revisado por Marina Hatty:-)