sábado, 31 de dezembro de 2016

Viagens de fim de ano



Viajar sempre me traz uma grande mistura de emoções. Eu adoro conhecer lugares novos e revisitar os que já conheço, sair da minha rotina e ver lugares e pessoas diferentes. No entanto, alguns dos momentos que antecedem minhas viagens são corridos, meio agoniados e não me deixam descansar direito. Fazer as malas é um desses momentos. Não consigo relaxar enquanto não aperto o cadeado fechando definitivamente aquele processo entediante e exaustivo.

Como desta vez uma de minhas viagens está coincidindo com o final do ano, é quase impossível não começar reflexões sobre o ano que passou e sobre o que vai chegar. Seguia meu processo habitual de separar minhas roupas, olhar pra elas com cuidado para decidir o que levar, quando me ocorreu que as retrospectivas de final de ano nos convidam a passar por um processo semelhante ao de arrumar as malas. As invés de roupas, os pensamentos e expecativas. No lugar dos cosméticos, nossas atitudes.

Esta comparação me fez encarar o fazer de malas de forma completamente diferente. De repente me senti feliz e leve, com a oportunidade que percebia. Arrumaria minhas idéias para o ano novo assim como arrumava minhas malas para rever minha terra natal.

Antes de colocar qualquer coisa na mala vazia, retiro quase tudo do guarda-roupa. Desta forma acabo, mesmo sem querer, revendo tudo que acumulei lá dentro. Descubro coisas bonitas poucas vezes usadas, outras coisas já batidas, precisando trocar e tantas outras que uso muito por serem quase tão confortáveis quanto a minha própria pele.  O mesmo processo acontece com meus pensamentos. 

O que eu quero levar pra o ano novo? Alguns sentimentos são velhos conhecidos, sensações agradáveis e habituais, das quais eu não pretendo me separar. Outros fizeram sentido pra mim em algum momento, mas nem sempre recorri a eles com a frequência que eu imaginava que recorreria e já outros me parecem antigos, surrados, ultrapassados. Os que são assim, faço questão de separar do resto pra jogar no lixo. Só espero que num momento de descuido não acabe os colocando, distraidamente de volta na mala. 

Olhei para minha bagagem com um certo orgulho pela certeza de desta vez ter conseguido escolher coisas essenciais para levar. Alguns presentes, bem separadinhos do resto das coisas, deixam bem claro o que é meu e o que apesar de parecer misturado com minhas coisas, claramente pertencerem a outras pessoas. Viajarei levando duas malas coloridas, fáceis de carregar, relativamente leves, bem arrumadas e dentro dos padrões que me possibilitem viajar sem criar transtornos para mim ou para mais alguém. 

Assim espero que seja também este final de ano. Que seja fácil deixar as coisas fúteis para trás e que consigamos colocar na mala apenas coisas úteis e necessárias. Que nosso sentimentos sejam bem selecionados e arrumados em bagagens leves que não nos transtornem. Desejo a todos uma chegada tranquila no ano novo e que ao abrirem suas malas em janeiro, descubram com alegria o grande número de possibilidades e presentes que trouxeram consigo. Se algo se desarrumou no caminho, que a bagunça seja fácil de limpar. Sigamos viajando e constantemente reavaliando o que desejamos carregar e o que é preciso deixar pra trás.

Se conseguimos superar 2016 o ano novo só pode ser melhor. Um excelente 2017 para todos nós.

domingo, 17 de julho de 2016

Pequenos escritores, pequenas escritoras



Outro dia, estava batendo perna com uma amiga e entramos em uma loja de departamentos. Enquanto ela procurava o que queria, eu fiquei vagando pelas seções, me distraindo em olhar uma coisinha aqui, outra ali, quando, na parte de brinquedos e jogos, avistei esse caderninho aqui:



“Opa”! pensei., “Escreva coisas. Esse  caderninho está falando comigo”. Parei tudo e fui toda animada futucar o produto. Fiquei toda me bulindo, com o que encontrei ao folhear as páginas. Parecia se tratar de uma idéia bala. Um caderninho cheio de inspirações divertidas para estimular a criatividade de crianças para escrever histórias. 


Como eu sou uma adulta abestalhada, que ainda compra brinquedinhos de criança para si mesma, já estava decidida a levar o tal caderninho para casa quando olho para o lado e vejo um outro bem parecido. Dou uma paradinha pra ver qual era a diferença, quando reparo em um detalhe que antes tinha me escapado aos olhos. O caderno que momentos antes tinha me encantado era disponível em duas versões: write stuff for boys (escreva coisas - para meninos) e write stuff for girls (escreva coisas -para meninas).


Ao ver aquilo, meus cabelos já se arrepiaram um pouco. Senti que não ia prestar, mas resolvi não julgar os cadernos pelas capas e folheei os dois com a intenção de  comparar quais seriam as diferenças entre eles. O que precisava ser diferente para meninos e meninas? O resultado foi o seguinte:


As três primeiras sugestões de histórias para meninos eram:

 Um explorador está em uma jornada para descobrir uma nova espécie. O que ele encontra em sua viagem? Alguém tenta impedi-lo?


Escreva uma postagem de diário de alguém que acabou de bater um record mundial.

 Você acabou de viajar através do tempo e do espaço. Quando e onde você desembarca? O que você faz?

E essas são as três primeiras sugestões de histórias para meninas:


 Escreva uma postagem de diário de alguém que está prestes a se inscrever em sua primeira competição de balé.


Escreva uma história com o título “O Vestido Perfeito”.


Pense na casa dos seu sonhos. Onde ela é? Como ela é?  

Dali em diante, todas as sugestões seguiam o mesmo esquema. Desisti imediatamente da compra. Em pleno 2016 acho triste que alguns ainda pensem que temas que visem estimular a imaginação e o gosto pela escrita em crianças precisem ser diferentes para meninos e meninas e que seguimos reforçando tantos estereótipos conservadores em suas cabecinhas. Sério mesmo? Por um momento achei que tivesse feito uma viagem no tempo e ido parar em 1950. Será que ainda não está claro o quanto isso é nocivo? Antigo? Antiquado?

Todas as sugestões de textos do caderninho para os meninos invocam aventuras, conquistas de prêmios e cenários de ficção científica enquanto no das meninas as sugestões são sempre de histórias românticas de um mundo de fadas perfeito. As duas versões reforçam estereótipos arcaicos de masculino e feminino, no qual os meninos são aventureiros, exploradores e corajosos, enquanto que as meninas são todas bailarinas de tutu rosa, que sonham com um castelo, vestidas de princesa.

Não há absolutamente nada de errado com meninas que gostam de tudo cor-de-rosa e que se amarram em sapatilhas de balé. Eu fui uma dessas meninas e está tudo bem comigo. Também está tudo bem em ser menino e gostar de aventuras, correr, pular, andar de skate e jogar futebol. O problema está quando nós adultos partimos do pressuposto que meninos sempre gostam disso e meninas daquilo e falhamos em apresentar-lhes outras possibilidades com as quais eles possam construir seus gostos e formar suas visões de mundo. Dessa forma, a gente acaba enegessando as preferências infantis e privando as crianças de muitas experiências e descobertas interesantes para seu desenvolvimento. Muitas vezes, tanto meninos quanto meninas querem brincar com as mesmas coisas, e suas preferências dependem muito mais de suas personalidades do que de seus gêneros.

Nós gostamos de dizer que somos todos diferentes e que valorizamos nossa individualidade, mas insistimos a negar possibilidades de diversidade a nossas crianças. Munidos de toda sorte de preconceitos que vamos formando durante os anos, acabamos impondo aos pequenos as coisas que achamos que são de meninas ou de meninos e depois nos indignamos quando constatamos o desequilíbrio dos papéis e das atuações de homens e mulheres nas sociedades. Existe uma relação direta entre a mentalidade por trás desse tipo de produto e problemas da vida adulta, como a baixa representação das mulheres em tecnologia e liderança, o tipo de imagem que se faz de mulheres em posição de poder e a desigualdade na divisão de tarefas entre homens e mulheres na famílias.

É extremamente problemático continuar a estimular meninas a limitar seus universos a princesas, belos vestidos e castelos de conto de fadas. Isso acaba as ensinando que mulher tem de ser delicada e a aspirar por um príncipe que venha lhe salvar, protejer e trazer aquilo tudo que ela deseja. No processo de conseguir alcancar esse ideal, muitas meninas acabam virando vítimas do consumo, aprendem a ter um olhar hipercrítico de seus próprios corpos e passam a construir suas existências em função de agradar esse príncipe que vai chegar. O que fazer com as meninas que não gostam de maquiagem e que preferem esportes, aventuras, correr e se sujar? O que fazer com os meninos que são introvertidos, que preferem ficar quietinhos desenhando, que não se interessam por futebol, que gostam de dançar?

Uma vez ouvi uma estória que é um bom exemplo de como nossa obsessão por reforçar estereótipos pode limitar o potencial de uma pessoa. Tinha um menino que estudava em uma escola que oferecia uma série de atividades extracurriculares. Uma delas era a aula de teatro que ele frequentava e adorava. Ali ele se divertia muito e ouvia de muitos que parecia ter um talento especial para a coisa. Um dia a professora resolveu fazer uns experimentos com dança, cenários e maquiagem. Os alunos começaram a aprender a fazer umas coisas incríveis tipo máscaras de zumbis, transformar o rosto de alguém em velhinho etc. Mas alguém ouviu a palavra “maquiagem” e começou a dizer que a aula de teatro era coisa de mulherzinha. Não demorou muito até os meninos do grupo começarem a sofrer bullying e resolverem trocar as aulas de teatro por outra atividade. Em pouco tempo, a maioria dos meninos estava fazendo futebol e o único que ficou, passou a ser chamado de todas as palavras homofóbicas disponíveis no vocabulário de meninos de 11 anos de idade. Esta história é só um exemplo. Podia contar uma dezena de outras parecidas e com um final de bullying e sofrimento desnecessário. 

Parece que a gente prefere desperdiçar talentos, fazer criança sofrer, traumatizar, coibir, punir e o escambáu a questionar valores. É triste que a gente ainda tenha esse tipo de tolerância com valores machistas que prejudicam mulheres e homens também. A gente insiste em separar meninos e meninas em categorias diferentes e depois sofre quando percebe que vive em um mundo onde não há igualdade entre homens e mulheres e onde não há espaço pra ser diferente dos padrões. Reforçar esse tipo de pensamento na infância ajuda a criar um mundo adulto doente. Por que a gente insiste nisso?

Seria maravilhoso se o mundo infantil fosse como um caderninho  colorido cheio de sugestões de histórias entitulado “Write stuff for children” – “escreva coisas para crianças”, no qual, independente de ser menino ou menina, todos pudessem ler as mesmas coisas e decidir um dia dar vida a uma pessoa corajosa, lutando contra um dragão ou desbravando planetas desconhecidos e, no outro, descrever como seria sua casa perfeita num desses planetas. Todas as possibilidades estariam ali, e claro que muita criança ia querer pular uma história ou outra por não se identificar com ela, mas todas elas deveriam antes de qualquer coisa poder ver a multiplicidade de temas que existem no mundo antes de serem convencidas de que, a depender de seu gênero, vai ter sempre um número limitado de temas para explorar em suas histórias. 

A gente precisa urgentemente deixar as crianças escreverem as histórias que preferirem. Esse é o primeiro passo para se ter adultos que sabem de si, que conhecem seus potenciais e seus limites, que sabem o que querem e o que não tem nada a ver consigo, e quem tem esse tipo de segurança acaba sendo mais leve e mais feliz.
Esse comercial mostra como  continuar insistindo que existe “coisa de menina” acaba podando muitos potenciais por aí.




Revisado por Marina Hatty - obrigada lindinha:-)